quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O Ponto Sem Volta

Quem foi criança nos anos 1970 ou 1980 muito provavelmente já brincou de Pega Varetas. O jogo, ainda à venda, consiste em deixar cair um punhado de palitos coloridos sobre uma mesa e, depois, coletar todos de uma determinada cor sem mexer nos demais. Mais que sorte, exige uma boa dose de destreza, pois muitas vezes um palito aqui mexe com outro acolá. É exatamente isso que acontece quando uma espécie é extinta na natureza. Mas, neste caso, a mesa é gigantesca e há centenas de milhares de varetas espalhadas.

A imagem lúdica é usada pelo pesquisador da Unicamp Thomas Michael Lewinsohn para ilustrar por que as crescentes perdas de diversidade biológica no planeta colocam em risco nossa própria sobrevivência. Se no jogo de varetas as variáveis que determinam o sucesso dos jogadores se limitam à sua quantidade, tamanho, forma, peso e disposição sobre a mesa, no tabuleiro da Terra as variáveis são infinitamente mais complexas, indo do clima e da geografia à economia e à política.
“O que chamamos de biodiversidade é um conjunto muito rico de organismos que formam sistemas vivos e são essenciais à qualidade e integridade de todo tipo de vida no planeta, inclusive a nossa”, explica o pesquisador, que preside a Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação. “Não é simplesmente uma coleção de organismos vivos, mas um grande emaranhado de relações que se mantêm funcionando como sistema. Possui uma capacidade de recuperação grande, mas não ilimitada”, completa.
Comprometer essa capacidade de recuperação, ou resiliência, gera problemas como erosão, perda de capacidade de recarga de aquíferos, eutrofização e muitos outros efeitos difíceis de prever e acompanhar. Isso porque as relações dentro do sistema que mantêm a Terra funcionando tal como a experimentamos hoje não são lineares.
Em todo o mundo, diversos esforços de avaliação e construção de cenários são empreendidos para que se descubra a partir de que ponto nossa interferência nos ecossistemas leva a uma situação irreversível. Os resultados têm mostrado que precisamos mudar urgentemente nossa forma de interagir com o ambiente e utilizar os recursos da biodiversidade, passando a operar dentro dos limites dos ecossistemas. Em 22 de maio, fixado como Dia Internacional da Biodiversidade, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, afirmou que a perda de espécies está chegando a um ponto sem volta.
Na Suécia, cientistas do Centro de Resiliência de Estocolmo, sob a direção de Johan Rockström, há anos estudam os fatores que influenciam na resiliência dos ecossistemas. Eles acreditam que já têm algumas respostas sobre quais os limiares dos sistemas e processos da Terra que, uma vez cruzados, podem gerar mudanças ambientais que tornariam a vida da nossa espécie bem difícil.
Em um artigo publicado na revista Nature, no ano passado, Rockström e seus colegas mostraram que há pelo menos nove processos que configuram limites para a manutenção das atuais condições de vida no planeta. São eles diminuição da camada de ozônio, acidificação dos oceanos, uso da água doce, mudanças no uso da terra, poluição química, lançamento de aerossóis na atmosfera, mudanças climáticas, perda da biodiversidade, e interferência nos ciclos de nitrogênio e fósforo. Para os três últimos, os pesquisadores acreditam que já queimamos a linha.

Embora a extinção das espécies seja um processo natural, está claro que nossas atividades nos dois últimos séculos aceleraram esse processo. Em seu artigo, Rockström mostra que os registros fósseis para vida marinha, por exemplo, são de até uma extinção por milhão de espécies por ano; para mamíferos o número não chega a uma espécie por milhão/ ano. A atual taxa de extinção de espécies é pelo menos cem vezes maior do que isso, e algumas estimativas chegam a mil. Os pesquisadores de Estocolmo dizem que o limite seguro seria até dez vezes maior do que os registros arqueológicos apontam como taxa natural de extinção das espécies na Terra.
Efeito Rebote
Ainda que a perda de biodiversidade ocorra no nível local e regional, os efeitos podem ser globais, afetando a forma como o planeta funciona. Não se pode considerar a perda de biodiversidade como um dado isolado, ela interage com diversos outros fatores, como o clima e a qualidade da água e do solo. A perda de biodiversidade também pode aumentar a vulnerabilidade dos ecossistemas terrestres e aquáticos às mudanças no clima e na acidez dos oceanos. O prejuízo não é apenas para a natureza selvagem, aquela procurada para descanso e fruição nas férias. Mesmo com todos os avanços de tecnicização e engenharia genética, a agricultura depende vitalmente dos serviços ambientais dos ecossistemas.
Alterações nos sistemas naturais que levam à perda de espécies polinizadoras já provocam prejuízos a algumas culturas. Um exemplo é o estudo desenvolvido com produtores de café pelos pesquisadores brasileiros Paulo de Marco Jr. e Flávia Monteiro Coelho. Eles compararam a floração do café em diferentes tipos de plantio com e sem remanescentes florestais próximos. Os resultados, publicados em 2004 na revista Biodiversity and Conservation, mostram que as plantações próximas de fragmentos florestais tiveram um aumento de 14,6% na produção de flores, independente da técnica de plantio. A diferença de produtividade pode ser relacionada com os serviços de polinização prestados por insetos das matas próximas.
O pequeno krill é outro exemplo dessa complexa rede de relações ecológicas e seus impactos econômicos. Como o crustáceo é fonte direta de alimento para várias espécies marinhas, desde moluscos e peixes até aves e mamíferos, sua extinção afetaria até mesmo o turismo de observação de baleias no litoral baiano, que só no ano passado recebeu mais de 3 mil visitantes. Pesquisas na Antártida apontam que ele está ameaçado pela pesca excessiva e pela mudança de temperatura no oceano austral.

Se as populações de krill diminuírem drasticamente, é possível que no futuro os observadores de baleias saiam decepcionados de suas excursões – um mercado global que anualmente cresce 11% e movimenta mais de US$ 1,5 bilhão, segundo dados do Instituto Baleia Jubarte. Sem o alimento que várias espécies buscam nas águas geladas do oceano austral, muitas poderão não ter energia suficiente para se reproduzirem nas águas quentes do Atlântico.
Paulo Gustavo Prado, diretor de Política Ambiental da Conservação Internacional, afirma que há tempos a perda de biodiversidade afeta diretamente nossa qualidade de vida. Os surtos de hantavirose em Brasília são um exemplo claro. A expansão urbana sobre o Cerrado no Distrito Federal leva à perda de habitat e traz ratos de espécies selvagens para áreas residenciais. A maior incidência de doenças tropicais como malária e febre amarela também são um efeito bem conhecido do desmatamento. É o que aconteceu no garimpo de Bom Futuro, em Rondônia, que gerou uma epidemia de malária em 1991.

Prado não tem dúvidas de que já provocamos danos irreversíveis à biodiversidade. “O caso mais notório e simples de constatar é o dos ursos polares, que por derretimento do gelo no Polo Norte estão ficando sem habitat.” A Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD) adiciona mais três pressões diretas sobre biodiversidade, além da perda de habitats e das mudanças climáticas citadas nos exemplos do ambientalista: poluição e invasão de espécies exóticas e superexploração de recursos como a pesca com redes de arrasto e nos períodos de desova.
O Tamanho do Problema
Por conta das pressões apontadas pela CBD, estima-se que um quarto das espécies de plantas e mamíferos existentes no mundo estão ameaçadas de extinção. Para aves, as estimativas estão em torno 37%; para insetos, o número chega a 75%. Apesar dos esforços para conservação feitos no mundo todo, a terceira edição do relatório GBO-3, lançado no início de maio pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), alerta que as perdas de biodiversidade e de habitats tendem a se agravar severamente ao longo do século XXI.
Os dados compilados no GBO-3 mostram cenários preocupantes. A tendência é que as florestas tropicais seguirão sendo convertidas em lavouras e pastagens e a sobrepesca continuará causando estragos nos ecossistemas marinhos, com drástica redução nos cardumes.
As mudanças de temperatura, as espécies invasoras, a poluição e a construção de barragens aumentarão a pressão sobre as espécies de água doce. Sem falar nos frágeis recifes de corais, ameaçados tanto pelo aquecimento das águas quanto pela acidificação e pela poluição nos mares.

As mudanças climáticas também provocarão mais estragos sobre a biodiversidade, alterando a distribuição geográfica de espécies e as características da vegetação de vários lugares, como a Amazônia. A forma e a escala que essas alterações poderão tomar são imprevisíveis. Um dos efeitos esperados é a migração de espécies marinhas das regiões tropicais para águas mais frias, o que diminuiria a biodiversidade nos ocea-nos tropicais e impactaria diretamente a indústria da pesca.
A contaminação por nitratos e fosfatos oriundos da agricultura e de esgotos, uma das linhas que queimamos, segundo os pesquisadores de Estocolmo, ameaça cobrir rios e lagos de algas por muitos anos. A eutrofização causada pelo excesso de algas diminui o oxigênio dissolvido na água e acaba com grande parte da fauna aquática.
Avaliadas sob o ponto de vista dos serviços ambientais prestados pelos ecossistemas, as perdas atuais, resultantes de desmatamento e degradação florestal, significam prejuízos entre US$ 2 trilhões e US$ 4,5 trilhões por ano. Um quadro que poderia ser revertido com investimentos anuais de US$ 45 bilhões em conservação e restauração de áreas degradadas, de acordo com o GBO-3.
Lacunas de Conhecimento
Se os dados sobre o que já perdemos de espécies são alarmantes, pensar em tudo que ainda falta conhecer sobre a vida no planeta aciona outro alerta: o cenário pode ser ainda mais dramático. Há uma grande imprecisão nas estimativas sobre o número de espécies que coabitam a Terra conosco. Mesmo com técnicas cada vez mais sofisticadas de coleta, identificação e análise, a tarefa de mapear todas as formas de vida do planeta é digna de Hércules.
Os dados existentes são mais precisos para os grupos mais bem estudados ao longo do tempo, como as plantas superiores e vertebrados terrestres. Árvores, mamíferos, aves, répteis de grande porte estão nesse patamar. Quando se fala em risco de extinção de um quarto das espécies vivas de mamíferos atualmente, o dado está num cenário em que mais de 98% das espécies foram avaliadas. E, ainda assim, há novidades para se descobrir. A biologia molecular está contribuindo para refinar a classificação das espécies, mostrando diferenças invisíveis até então, um tipo de avanço que permitiu descrever uma nova espécie de elefante na África em 2001.
Mas a história é outra quando se olha para invertebrados, micro-organismos e organismos inferiores. Os dados que apontam risco de extinção de três quartos das espécies de insetos são baseados na avaliação de menos de 0,1% do total de espécies. No que diz respeito a artrópodes, os números variam na ordem de milhões: podem existir entre 2 milhões e 30 milhões de espécies no mundo.
Isso se deve tanto às dificuldades de coleta quanto de classificação e identificação. Bactérias, fungos e algas, para os quais o próprio conceito de espécie que temos atualmente não se encaixa perfeitamente, podem chegar a 100 milhões circulando por aí.

Na opinião de Thomas Lewinsohn, se houvesse dez vezes mais pessoas trabalhando com esse tipo de pesquisa, ainda assim não se daria conta do serviço neste século. “Calcula-se que as espécies de besouros passam de 1 milhão. Se este número estiver correto, faltaria identificar pelo menos 700 mil. No ritmo atual, levaríamos 650 anos pra terminar o estudo”, aponta o ecólogo.

No Brasil, que abriga em torno de 15% do total da diversidade biológica do planeta, o conhecimento é fragmentado e incompleto. Não temos uma biblioteca de referência eficiente sobre o tema e boa parte das coleções taxonômicas de nossa biota está espalhada pela Europa e os Estados Unidos. As coleções nacionais limitam-se às regiões mais desenvolvidas, povoadas ou de fácil acesso, e o recente incêndio no Butantan mostra como são vulneráveis. Para completar, temos pouquíssimos especialistas em taxonomia, a difícil arte de identificar uma espécie.

A boa notícia é que a produção de conhecimento vem aumentando. Dados da Avaliação do Estado do Conhecimento da Biodiversidade Brasileira, encomendada pelo MMA e publicada em 2005, indicam que a cada ano 700 novas espécies animais são identificadas. O mesmo está acontecendo com as plantas. Segundo Gustavo Martinelli, pesquisador do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, a cada dois dias é descrita uma nova planta no Brasil. Martinelli, que coordena o ponto focal do Brasil na CBD, comemorou em maio o cumprimento de uma das metas da Convenção, com o lançamento da lista atualizada de espécies da flora brasileira conhecida. A última datava de 1916.

Saiba Mais
O que é a CDB
A Convenção sobre Diversidade Biológica foi assinada por 156 países durante a Rio-92 e entrou em vigor no final de 1993.  Tem por objetivo discutir e implementar medidas para a conservação, o uso sustentável da diversidade biológica e a distribuição justa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos. Para isso, estabeleceu 11 metas que deveriam ser atingidas até 2010.
O que é GBO -3
Global Biodiversity Outlook, em português, Panorama Global da Biodiversidade. Trata-se do terceiro relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente sobre o estado da biodiversidade no mundo. Traz a avaliação de cada uma das 11 metas da CDB, bem como de suas submetas. Segundo o relatório, nenhuma das 21 submetas foi plenamente atingida globalmente e em apenas quatro se constataram progressos significativos.
Fonte: O ponto sem volta - Gisele Neuls - Mercado Ético.

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