A imagem lúdica
é usada pelo pesquisador da Unicamp Thomas Michael Lewinsohn para ilustrar por
que as crescentes perdas de diversidade biológica no planeta colocam em risco
nossa própria sobrevivência. Se no jogo de varetas as variáveis que determinam
o sucesso dos jogadores se limitam à sua quantidade, tamanho, forma, peso e
disposição sobre a mesa, no tabuleiro da Terra as variáveis são infinitamente
mais complexas, indo do clima e da geografia à economia e à política.
“O que chamamos
de biodiversidade é um conjunto muito rico de organismos que formam sistemas
vivos e são essenciais à qualidade e integridade de todo tipo de vida no
planeta, inclusive a nossa”, explica o pesquisador, que preside a Associação
Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação. “Não é simplesmente uma coleção
de organismos vivos, mas um grande emaranhado de relações que se mantêm
funcionando como sistema. Possui uma capacidade de recuperação grande, mas não
ilimitada”, completa.
Comprometer essa
capacidade de recuperação, ou resiliência, gera problemas como erosão, perda de
capacidade de recarga de aquíferos, eutrofização e muitos outros efeitos
difíceis de prever e acompanhar. Isso porque as relações dentro do sistema que
mantêm a Terra funcionando tal como a experimentamos hoje não são lineares.
Em todo o mundo,
diversos esforços de avaliação e construção de cenários são empreendidos para
que se descubra a partir de que ponto nossa interferência nos ecossistemas leva
a uma situação irreversível. Os resultados têm mostrado que precisamos mudar
urgentemente nossa forma de interagir com o ambiente e utilizar os recursos da
biodiversidade, passando a operar dentro dos limites dos ecossistemas. Em 22 de
maio, fixado como Dia Internacional da Biodiversidade, o secretário-geral da
ONU, Ban Ki-moon, afirmou que a perda de espécies está chegando a um ponto sem
volta.
Na Suécia,
cientistas do Centro de Resiliência de Estocolmo, sob a direção de Johan
Rockström, há anos estudam os fatores que influenciam na resiliência dos
ecossistemas. Eles acreditam que já têm algumas respostas sobre quais os limiares
dos sistemas e processos da Terra que, uma vez cruzados, podem gerar mudanças
ambientais que tornariam a vida da nossa espécie bem difícil.
Em um artigo
publicado na revista Nature, no ano passado, Rockström e seus colegas mostraram
que há pelo menos nove processos que configuram limites para a manutenção das
atuais condições de vida no planeta. São eles diminuição da camada de ozônio,
acidificação dos oceanos, uso da água doce, mudanças no uso da terra, poluição
química, lançamento de aerossóis na atmosfera, mudanças climáticas, perda da
biodiversidade, e interferência nos ciclos de nitrogênio e fósforo. Para os
três últimos, os pesquisadores acreditam que já queimamos a linha.
Embora a
extinção das espécies seja um processo natural, está claro que nossas
atividades nos dois últimos séculos aceleraram esse processo. Em seu artigo,
Rockström mostra que os registros fósseis para vida marinha, por exemplo, são
de até uma extinção por milhão de espécies por ano; para mamíferos o número não
chega a uma espécie por milhão/ ano. A atual taxa de extinção de espécies é
pelo menos cem vezes maior do que isso, e algumas estimativas chegam a mil. Os
pesquisadores de Estocolmo dizem que o limite seguro seria até dez vezes maior
do que os registros arqueológicos apontam como taxa natural de extinção das
espécies na Terra.
Efeito Rebote
Ainda que a
perda de biodiversidade ocorra no nível local e regional, os efeitos podem ser
globais, afetando a forma como o planeta funciona. Não se pode considerar a
perda de biodiversidade como um dado isolado, ela interage com diversos outros
fatores, como o clima e a qualidade da água e do solo. A perda de
biodiversidade também pode aumentar a vulnerabilidade dos ecossistemas
terrestres e aquáticos às mudanças no clima e na acidez dos oceanos. O prejuízo
não é apenas para a natureza selvagem, aquela procurada para descanso e fruição
nas férias. Mesmo com todos os avanços de tecnicização e engenharia genética, a
agricultura depende vitalmente dos serviços ambientais dos ecossistemas.
Alterações nos
sistemas naturais que levam à perda de espécies polinizadoras já provocam
prejuízos a algumas culturas. Um exemplo é o estudo desenvolvido com produtores
de café pelos pesquisadores brasileiros Paulo de Marco Jr. e Flávia Monteiro
Coelho. Eles compararam a floração do café em diferentes tipos de plantio com e
sem remanescentes florestais próximos. Os resultados, publicados em 2004 na
revista Biodiversity and Conservation, mostram que as plantações próximas de
fragmentos florestais tiveram um aumento de 14,6% na produção de flores,
independente da técnica de plantio. A diferença de produtividade pode ser
relacionada com os serviços de polinização prestados por insetos das matas
próximas.
O pequeno krill
é outro exemplo dessa complexa rede de relações ecológicas e seus impactos
econômicos. Como o crustáceo é fonte direta de alimento para várias espécies
marinhas, desde moluscos e peixes até aves e mamíferos, sua extinção afetaria
até mesmo o turismo de observação de baleias no litoral baiano, que só no ano
passado recebeu mais de 3 mil visitantes. Pesquisas na Antártida apontam que
ele está ameaçado pela pesca excessiva e pela mudança de temperatura no oceano
austral.
Se as populações
de krill diminuírem drasticamente, é possível que no futuro os observadores de
baleias saiam decepcionados de suas excursões – um mercado global que
anualmente cresce 11% e movimenta mais de US$ 1,5 bilhão, segundo dados do
Instituto Baleia Jubarte. Sem o alimento que várias espécies buscam nas águas
geladas do oceano austral, muitas poderão não ter energia suficiente para se
reproduzirem nas águas quentes do Atlântico.
Paulo Gustavo
Prado, diretor de Política Ambiental da Conservação Internacional, afirma que
há tempos a perda de biodiversidade afeta diretamente nossa qualidade de vida.
Os surtos de hantavirose em Brasília são um exemplo claro. A expansão urbana
sobre o Cerrado no Distrito Federal leva à perda de habitat e traz ratos de
espécies selvagens para áreas residenciais. A maior incidência de doenças
tropicais como malária e febre amarela também são um efeito bem conhecido do
desmatamento. É o que aconteceu no garimpo de Bom Futuro, em Rondônia, que
gerou uma epidemia de malária em 1991.
Prado não tem
dúvidas de que já provocamos danos irreversíveis à biodiversidade. “O caso mais
notório e simples de constatar é o dos ursos polares, que por derretimento do
gelo no Polo Norte estão ficando sem habitat.” A Convenção sobre Diversidade
Biológica (CBD) adiciona mais três pressões diretas sobre biodiversidade, além
da perda de habitats e das mudanças climáticas citadas nos exemplos do
ambientalista: poluição e invasão de espécies exóticas e superexploração de
recursos como a pesca com redes de arrasto e nos períodos de desova.
O Tamanho do Problema
Por conta das
pressões apontadas pela CBD, estima-se que um quarto das espécies de plantas e
mamíferos existentes no mundo estão ameaçadas de extinção. Para aves, as
estimativas estão em torno 37%; para insetos, o número chega a 75%. Apesar dos
esforços para conservação feitos no mundo todo, a terceira edição do relatório
GBO-3, lançado no início de maio pelo Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (Pnuma), alerta que as perdas de biodiversidade e de habitats tendem a
se agravar severamente ao longo do século XXI.
Os dados
compilados no GBO-3 mostram cenários preocupantes. A tendência é que as
florestas tropicais seguirão sendo convertidas em lavouras e pastagens e a
sobrepesca continuará causando estragos nos ecossistemas marinhos, com drástica
redução nos cardumes.
As mudanças de
temperatura, as espécies invasoras, a poluição e a construção de barragens
aumentarão a pressão sobre as espécies de água doce. Sem falar nos frágeis
recifes de corais, ameaçados tanto pelo aquecimento das águas quanto pela
acidificação e pela poluição nos mares.
As mudanças
climáticas também provocarão mais estragos sobre a biodiversidade, alterando a
distribuição geográfica de espécies e as características da vegetação de vários
lugares, como a Amazônia. A forma e a escala que essas alterações poderão tomar
são imprevisíveis. Um dos efeitos esperados é a migração de espécies marinhas
das regiões tropicais para águas mais frias, o que diminuiria a biodiversidade
nos ocea-nos tropicais e impactaria diretamente a indústria da pesca.
A contaminação
por nitratos e fosfatos oriundos da agricultura e de esgotos, uma das linhas
que queimamos, segundo os pesquisadores de Estocolmo, ameaça cobrir rios e
lagos de algas por muitos anos. A eutrofização causada pelo excesso de algas
diminui o oxigênio dissolvido na água e acaba com grande parte da fauna aquática.
Avaliadas sob o
ponto de vista dos serviços ambientais prestados pelos ecossistemas, as perdas
atuais, resultantes de desmatamento e degradação florestal, significam
prejuízos entre US$ 2 trilhões e US$ 4,5 trilhões por ano. Um quadro que poderia
ser revertido com investimentos anuais de US$ 45 bilhões em conservação e
restauração de áreas degradadas, de acordo com o GBO-3.
Lacunas de Conhecimento
Se os dados
sobre o que já perdemos de espécies são alarmantes, pensar em tudo que ainda
falta conhecer sobre a vida no planeta aciona outro alerta: o cenário pode ser
ainda mais dramático. Há uma grande imprecisão nas estimativas sobre o número
de espécies que coabitam a Terra conosco. Mesmo com técnicas cada vez mais
sofisticadas de coleta, identificação e análise, a tarefa de mapear todas as
formas de vida do planeta é digna de Hércules.
Os dados
existentes são mais precisos para os grupos mais bem estudados ao longo do
tempo, como as plantas superiores e vertebrados terrestres. Árvores, mamíferos,
aves, répteis de grande porte estão nesse patamar. Quando se fala em risco de
extinção de um quarto das espécies vivas de mamíferos atualmente, o dado está
num cenário em que mais de 98% das espécies foram avaliadas. E, ainda assim, há
novidades para se descobrir. A biologia molecular está contribuindo para
refinar a classificação das espécies, mostrando diferenças invisíveis até
então, um tipo de avanço que permitiu descrever uma nova espécie de elefante na
África em 2001.
Mas a história é
outra quando se olha para invertebrados, micro-organismos e organismos
inferiores. Os dados que apontam risco de extinção de três quartos das espécies
de insetos são baseados na avaliação de menos de 0,1% do total de espécies. No
que diz respeito a artrópodes, os números variam na ordem de milhões: podem
existir entre 2 milhões e 30 milhões de espécies no mundo.
Isso se deve
tanto às dificuldades de coleta quanto de classificação e identificação.
Bactérias, fungos e algas, para os quais o próprio conceito de espécie que
temos atualmente não se encaixa perfeitamente, podem chegar a 100 milhões
circulando por aí.
Na opinião de
Thomas Lewinsohn, se houvesse dez vezes mais pessoas trabalhando com esse tipo
de pesquisa, ainda assim não se daria conta do serviço neste século.
“Calcula-se que as espécies de besouros passam de 1 milhão. Se este número
estiver correto, faltaria identificar pelo menos 700 mil. No ritmo atual,
levaríamos 650 anos pra terminar o estudo”, aponta o ecólogo.
No Brasil, que
abriga em torno de 15% do total da diversidade biológica do planeta, o
conhecimento é fragmentado e incompleto. Não temos uma biblioteca de referência
eficiente sobre o tema e boa parte das coleções taxonômicas de nossa biota está
espalhada pela Europa e os Estados Unidos. As coleções nacionais limitam-se às
regiões mais desenvolvidas, povoadas ou de fácil acesso, e o recente incêndio
no Butantan mostra como são vulneráveis. Para completar, temos pouquíssimos
especialistas em taxonomia, a difícil arte de identificar uma espécie.
A boa notícia é
que a produção de conhecimento vem aumentando. Dados da Avaliação do Estado do
Conhecimento da Biodiversidade Brasileira, encomendada pelo MMA e publicada em
2005, indicam que a cada ano 700 novas espécies animais são identificadas. O
mesmo está acontecendo com as plantas. Segundo Gustavo Martinelli, pesquisador
do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, a cada dois dias é descrita uma nova
planta no Brasil. Martinelli, que coordena o ponto focal do Brasil na CBD,
comemorou em maio o cumprimento de uma das metas da Convenção, com o lançamento
da lista atualizada de espécies da flora brasileira conhecida. A última datava
de 1916.
Saiba Mais
O que é a CDB
A Convenção
sobre Diversidade Biológica foi assinada por 156 países durante a Rio-92 e
entrou em vigor no final de 1993. Tem
por objetivo discutir e implementar medidas para a conservação, o uso
sustentável da diversidade biológica e a distribuição justa dos benefícios
decorrentes da utilização dos recursos genéticos. Para isso, estabeleceu 11
metas que deveriam ser atingidas até 2010.
O que é GBO -3
Global
Biodiversity Outlook, em português, Panorama Global da Biodiversidade. Trata-se
do terceiro relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente sobre
o estado da biodiversidade no mundo. Traz a avaliação de cada uma das 11 metas
da CDB, bem como de suas submetas. Segundo o relatório, nenhuma das 21 submetas
foi plenamente atingida globalmente e em apenas quatro se constataram
progressos significativos.
Fonte: O ponto sem volta - Gisele
Neuls - Mercado Ético.
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